sexta-feira, 30 de outubro de 2009

PASSOS NA AREIA


Havia 23 anos eu não pisava em solo maranhense.
Muitos me diziam – ingrato, desnaturado.
Não se trata disso. Em verdade carrego o amor explícito pela minha origem no apelido que adotei como nome profissional – Maranhão Viegas.
A história dessa adoção começou lá atrás, nos idos dos anos 80.
Era a primeira aula da faculdade de jornalismo em São Leopoldo, na UNISINOS.
Rodada de apresentação aberta. Chega a minha vez.
Então, meu filho, como é o seu nome e de onde você vem (dia a professora Elvira, por coincidência, também maranhense). Inorbel Viegas. Venho do Maranhão.
Eu sei, disse ela. Mas vamos fazer o seguinte, vai ser difícil guardar esse nome.
Por incomum. Então, deixe de coisa e a partir de agora você será o nosso Maranhão.
Maranhão Viegas. Pronto. Batizaram-me.

Anos mais tarde, quando cheguei à profissão, os homens da TV quiseram mudar o meu nome. Outra vez. De novo, lancei mão do meu apelido. Agora, com mais propriedade e convicção. Virei repórter – Maranhão Viegas. E assim me fui, até que a dupla personalidade me incomodou. Hoje, depois de alguns anos de psicanálise, resolvi velhos entraves, compreendi outros tantos e equilibrei a convivência pacífica dos dois em um único sujeito – Inorbel Maranhão Viegas.

Quando fiz 47, em agosto deste, decidi que era hora de me dar uma viagem de retorno de presente. Levei comigo Mara, Mariana e Gabriel. E um feixe de emoções que não sei medir o tamanho.

Dá última vez em que estive lá, em 86, caminhei pela Madre Deus, bairro onde nasci, ainda em companhia do meu avô. Ele, eu e uma câmera nas mãos. Eu estava decidi a registrar o que pudesse em dois rolinhos de filme, cada um com três minutos. Segui-lhe os passos da Rui Barbosa até a Rua de São Pantaleão, perto do hospital Geral. Havia ali um beco onde a velha guarda jogava dominó.  Turma dele. Conversavam por olhares. “Seu” Opílio Viegas era um dos que permanecia mais tempo à mesa. Entravam e saiam duplas de desafiantes e ele lá.

Nessa época, a cidade enfrentava um racionamento de energia. A coisa era grave de tal forma, que meu avô controlava em uma tabela feita a lápis, diariamente, o nível de consumo para saber se estava na média ou não. Quem excedia, pagava ao governo uma cara multa. Assim é que a minha avó, no início do mês, estava liberada para assistir todas as novelas e mais o Jornal Nacional.

A medida que o mês ia passando e a cota sendo atingida, diminuía o tempo de TV. Primeiro o meu avô cortava a novela das duas. Depois, a das seis. Por fim, assistia-se apenas o jornal nacional e novela das nove.

Como um Glauber Rocha desavisado, cheguei com uma câmera nas mãos e muitas idéias na cabeça. Uma filmadora super 8 e um “pau de luz” de 1.000 watts. Uma manhã, com ele e minha avó à mesa, na hora do almoço, decidi registrar a cena. Os dois empolgados. Aprumei a máquina, disparei o filme e – Tchum! – acendi o refletor. Mil watts na cara do meu avô e ele não se conteve – “Valha-me Deus! Antonieta, pega as velas que se foi a cota de energia do mês.”

Ele morreu sem ver o filme revelado. Há poucos dias, encontrei os dois rolinhos de três minutos e mandei para São Paulo. Ainda não sei se há algo lá. Torço para que o tempo não tenha apagado estas imagens na fita. Na minha memória elas não se apagarão, jamais.

Agora, desembarco com outra câmera nas mãos. Mais moderna, ecologicamente correta e me permitindo rever instantaneamente o que gravo. São três dias de reencontro. E de descobertas. Reencontro amigos deixados na infância. Outros, da minha curta passagem de seis meses pela Universidade Federal do Maranhão. Amigos definitivos. Revejo a cidade com os olhos de menino crescido. Pedras de cantaria nas ruas, velhos casarões azulejados, ladeiras que dão no mar. A dor do encontro dói em meu peito como uma melancolia de seis da tarde, de fim de dia.

Vejo meus filhos descobrindo o meu passado. De onde vim, havia muita areia e mar. Havia um mundo que eu não cheguei a descobrir por inteiro. E que agora estava ao alcance da minha mão por três dias. Jorge, meu primo. Tia Dica, mais velhinha do que imaginava, sentada em um canto da porta da quitanda. Estava tudo lá, como havia anos, deixei. Ali, tive a impressão de que o tempo passou só para as pessoas – agora com cabelos brancos e mansidão. As casas, as ruas, os becos, os cheiros, os sabores, estavam todos lá. Como estiveram uma vida inteira.

Achei tempo de ir aos lençóis. Um deserto de areia e água doce. Até ali só o havia visto em filme – Casa de areia. E imaginado na fala de tantos. É de fato um deserto imenso. Inusitado. Pontuado por lagoas de água doce e um horizonte sem fim.

A viagem curta serviu para aplacar a saudade e dimensionar o tempo. Estive distante sem nunca ter partido. Eu, Inorbel, sou cada vez mais Maranhão. Viegas.




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Inorbel Maranhão Viegas
Jornalista - Brasília

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